terça-feira, 24 de maio de 2016

Só fere quem está ferido. Só é atingido quem precisa curar-se.


Algum lugar do mundo, 24 de maio de 2016

Só fere o outro, seja com palavras, atitudes ou indiferença, quem tem na alma um machucado. Fere numa atitude desesperada de livrar-se da dor ou de compartilhá-la, pois até mesmo doentes buscamos companhia em nossa profunda carência.

Só fere quem ainda não percebeu que qualquer ataque é fruto de vazio interno, de dor calada, muitas vezes escondida embaixo de um castelo de convicções e certezas, castelo de areia, imponente até o primeiro toque suave.

Só agride quem ainda não descobriu sua verdade e clama por ajuda em forma de atenção, mesmo que negativa, por não saber outra forma de fazê-lo. Por não entender que o que sente não é raiva, mas dor. Sentida aparentemente sem motivo, sem por que.

Só machuca quem não se ama o suficiente. Pois, amando-se, saberia a importância de amar o outro, saberia que tudo que vai, volta imediatamente e inunda nosso ser. Seja amor, seja dor. Na mesma intensidade enviada. Como diz a lei.

Só critica e humilha quem não aceita a si mesmo. Incomoda-se com o semelhante por lembrar-se de suas próprias correntes e com o diferente, de suas próprias fraquezas.

Entretanto, perceba, só é ferido quem precisa curar-se. Quem ainda não integrou todo seu ser e deixou lacunas, fáceis de serem atingidas com a dor do outro.

Só é machucado quem não encontrou a paz de ser somente o que se é, de aceitar-se sem culpa e sem desculpas. E, por isso, é cortado pela espada do julgamento alheio enquanto sufoca-se em necessidade de aceitação.

Só é humilhado quem não entende que qualquer ataque recebido não precisa ser acolhido, pois da porta do nosso ser, só nós temos a chave e somos o único porteiro.

Quando acolho a dor do outro, acolho a minha própria. Lembro-me do vazio que precisa ser preenchido com luz. Seguro a dor do outro em mim e deixo ela fluir para onde mais dói, como um sinalizador. É lá onde ainda preciso de cura.

Naquela lacuna esquecida, sufocada, na parede do porão do meu ser, ainda escasso de amor. Na trinca que passou despercebida ou que era, aparentemente, inofensiva, mas que permitiu que a dor do outro infiltrasse em mim. Justo naquele dia de chuva, quando eu mais precisava de proteção.

Como a vida é sábia. Ferido ou agressor, ambos carregam a oportunidade de sair desse círculo de dor. Quebrar correntes de ódio e formar laços de amor. Primeiro, reconhecendo suas trincas internas, depois, parando de refletir a própria dor no outro.

Finalmente, o comportamento reativo dá lugar à compaixão por quem ainda sofre e ataca sem saber. Não aquela de quem é superior, mas de quem já muito fez (e faz) o mesmo sem querer. E daquela fenda infiltrada, outrora, de dor, transborda perdão. Dessa vez, de dentro para fora, por si e pelo outro. Perdão esse que preenche todas as trincas e buracos com o único material permeável somente ao que faz bem:

- Amor. 

sábado, 14 de maio de 2016

A coragem de estar à deriva

Algum lugar do mundo, 14 de maio de 2016

Sentir-se à deriva na vida exige coragem, fé e desapego ao medo. Não espere não sentir medo para soltar as cordinhas que te prendem ao cais. Aceite que o medo está ali como um mecanismo de defesa muito antigo e enraizado. Entenda de onde vem seu medo. Respire e sinta-o agindo sobre você. 

Normalmente, o medo vem da mente, que não é capaz de suportar o vazio da insegurança. A mente não suporta nem mesmo a falta de um plano B, quem dirá de um plano A. Mas, o que ela não sabe é que toda e qualquer segurança é pura ilusão. E não adianta tentar convencê-la do contrário.

A verdade é que, por mais seguro você pense estar, por mais bem amarradas sejam suas cordas, quando se faz necessária a hora da mudança, com um simples sopro a vida te empurra e te muda completamente de direção. Não há corda e talvez não haja nem mesmo barco que possa impedi-la.

Seria a vida, então, cruel? Talvez, no primeiro susto, seja esta a sensação. Mas, cruel seria se ela nos poupasse de todo aprendizado inerente à mudança. A vida não nos surpreende para que soframos. Ela espera que possamos aprender algo com isso para sermos mais fortes, para liberarmos o que não nos serve mais, coisa que, às vezes, é tão difícil de ser percebida. Por mais seguro que o cais seja, nem sempre ele é abrigo da sua felicidade. A hora de partir chega quando a dor do vazio torna-se maior do que o medo do novo. 

E como saber se um desejo de mergulhar no desconhecido é puro impulso, fuga da realidade ou uma necessidade real da alma? Primeiro, é preciso garantir que, caso você decida ficar à deriva, poderá assumir e arcar com os riscos dessa mudança. Isto se chama maturidade. Claro que, se você tem o apoio voluntário daqueles que o ama, ótimo. Mas nunca solte suas cordinhas esperando ser salvo caso afogue-se. Se você estiver preparado conscientemente para lidar com qualquer consequência da sua escolha (o que não significa ausência de medo) e sentir que esse risco ainda vale mais a pena do que o vazio das suas cordinhas seguras, provavelmente trata-se de uma necessidade real.

E, finalmente, quando você se solta e vai, a dor que surge pela falta do concreto transforma-se, aos poucos, em liberdade e autodescoberta. Haverá momentos de escuridão, em que nem mesmo a lua se fará presente. Estes momentos poderão ser sombrios ou perfeitos para repousar a alma e se preparar para o dia que vem. Haverá tempestades e lindos pores-do-sol. E, então, você perceberá que tudo isso já existia antes, lá naquele cais, onde você tinha a ilusão de estar protegido. A diferença é que agora você não sabe onde e quando irá atracar seu barco outra vez. Talvez você nem queira mais deixar o mar. Enquanto isso, aproveite a viagem. Quem sabe nos cruzamos por ai. 

domingo, 8 de maio de 2016

Você já tocou sua alma com carinho hoje?


Algum lugar do mundo, 08 de maio de 2016

“Se a gente cresce com os golpes duros da vida, 
também podemos crescer com os toques suaves na alma.” 
Cora Coralina

Nestes tempos acelerados, em que ansiedade virou epidemia e falta de tempo motivo de orgulho, quando foi a última vez que você tocou sua alma com carinho?

Fazer o melhor, ser o melhor, superar, produzir. E, de repente, nos esquecemos do que realmente importa, da essência e do que nos dá energia e alegria para prosseguir.

Tocar a própria alma é algo muito particular que envolve coisas singelas. A alma não faz questão de estardalhaços e somente atitudes delicadas, daquelas quase imperceptíveis a olho-nu, é que podem tocá-la.

Um chocolate quente, um cochilo breve mas revigorante, o cheiro de uma flor, café com biscoitinhos. O abraço de um amigo, um banho reconfortante, ligar para a família (aquela do seu coração). O calor do sol no inverno ou a sombra de uma árvore no verão. Sentir a brisa, o cheiro de chuva, ouvir ou tocar aquela música que te faz lembrar quem você é. Um livro, uma poesia, um filme. Tocar a grama, espreguiçar, colocar uma música no seu quarto e dançar até cansar. Cantar, meditar, respirar. Seu moletom velho e confortável. Cheiro de alho refogado. Aquele bolo que saiu do forno. Uma lambida do seu cachorro. Dar-se um abraço e dizer “Ei, você fez seu melhor! Estou orgulhoso de você.”.

Normalmente, o que toca nossa alma está muito ligado às nossas memórias de infância, quando ainda estávamos mais conectados com nossa essência. Infelizmente, nós crescemos e esquecemos o quão importante é manter esse contato. Sem ele, morremos aos poucos. A vida torna-se mecânica e sem sentido. A tristeza aparece.

O bom dessa coisa de tocar almas é que elas, por mais diferentes que sejam, podem comunicar-se umas com as outras. Mesmo que você esqueça de tocar a sua própria, cada vez que chega na de alguém, é instantaneamente tocado. 

Mas, como foi dito, almas são feitas de material puro, tocadas apenas com delicadeza. Naquele sorriso sincero, naquele gesto de preocupação, naquela surpresa pequena, porém doce e cercada de carinho. Tudo que é genuíno chega até as almas. Toca fundo e ressoa para as outras, em diferentes cores e melodias suaves. Após tocar todas as almas existentes, dissipa-se pelo universo e fica na memória.

domingo, 1 de maio de 2016

Sejamos fora da caixinha


Faz parte da vida, a definição da nossa personalidade e, mesmo antes de nascermos, começamos a receber rótulos. No começo, apenas os aceitamos e queremos honrá-los. Posteriormente, passamos a criá-los e defendê-los.

Sinto que gostamos de rótulos, pois eles nos fazem sentir únicos. Como se fosse essencial personalizar uma caixinha de rótulos que te defina e que faça as pessoas lembrarem-se de você. Que faça com que você mesmo possa se descrever. E nos apegamos a essa caixinha. Alguns se apegam tanto, que nunca mais querem mudá-la. Talvez esses sejam os ditos “personalidade forte”. Já outros, estão sempre buscando um conjunto de rótulos mais bonitos pra colocar lá. E há de quem ouse questionar minha preciosa caixinha, principalmente pra sugerir que um rótulo feio deveria estar ali ou que um daqueles que mais aprecio não poderia ali ficar.

O problema é que, se você se confunde com a sua caixinha, pode acabar entrando num vazio imenso sem entender o porquê, já que possui tantos rótulos bonitos pra mostrar. Já que sua caixinha é colorida, tem glitter e toca música quando aberta. Já que tantos gostam dela.

Acontece que você não é sua caixinha e talvez tenha perdido tanto tempo com ela que se esqueceu de se encontrar. Talvez você não tenha percebido que mudou e que, há tempos, já é completamente diferente do que está lá. Talvez você tenha ignorado o que pensa e o que sente por julgar que não combinaria com a sua caixinha e por medo de como julgariam seu novo conteúdo. Por medo de afastar quem você ama.

E que graça tem todo essa trabalho de ornamentação para agradar os olhos alheios se ele não condisser com a realidade? Pior ainda, se nem ao menos soubermos quem somos? E quem não consegue expressar o que é sente raiva, mesmo que inconscientemente, de quem tem coragem de colocar na caixinha só o que vem de dentro e julga com estranheza o que é original. Tentando fabricar caixinhas socialmente aceitáveis, criamos um dominó de julgamento e desrespeito pela caixinha dos outros.

Por outro lado, pessoas que tem rótulos condizentes com sua essência não precisam esbravejar por ai “Ei, olhe meu rótulo, esse é real, eu sou mesmo assim!” Não. Normalmente, elas não se importam se os outros os aprovam ou não. Exigem apenas o respeito que todos merecem. Afinal, só estão sendo o que são. Nada podem fazer em relação a isso. Feio ou bonito, trata-se apenas da realidade. E elas se sentem livres pra mudar, pra melhorar, pois já não se importam com o desconforto que isso traz aos outros desde que estejam em paz consigo mesmas. Elas não se importam se não há palavras no nosso dicionário para descrever seu real estado de ser. Palavras são muito limitadas perto da realidade.

Estamos sempre buscando rotular uns aos outros e esquecemos que a vida é pura mudança. Damo-nos o direito de mudar somente um pouco por vez e em situações especiais. Por que nos limitamos? Por que temos medo de nos perder? De perder nossos rótulos, de esquecer a caixinha? Por que não deixamos o outro mudar e a nós também? Por que me sinto ameaçado quando percebo que meu companheiro/amigo/parente está mudando? Somos livres, pois! 

E, no fim, somente quando nos libertarmos dessa necessidade de entender e controlar caixinhas é que poderemos nos relacionar de forma genuína uns com os outros. Caixinhas com rótulos reais. Nunca perfeitos, mas que apenas são e deixam ser em paz



Imagem: http://www.asomadetodosafetos.com/2016/03/abrindo-o-bau-da-vovo-a-coragem-de-olhar-dentro-de-si-mesmo.html